sábado, 24 de maio de 2014

O Captain! my Captain! Ou, de como aprendi que brincar é coisa séria.




Hoje não vou ser ranheta, como de costume. Quero falar de algo que me é muito caro e que tem grande importância na minha formação e vida profissional e pessoal - o brincar!

Entrei para a faculdade de psicologia com 18 anos recém completados. Era o mesmo curso que minha mãe havia feito e eu afirmava com toda a certeza adolescente que isso não tinha nada a ver com minha escolha, que meu caminho seria totalmente diferente, e já entrei refutando todas as referências teóricas que percebi que ela de alguma forma havia assumido. Sete anos de divã me libertaram para, verdadeiramente, traçar meu próprio caminho... Mas isso é outra história!

No começo do curso, me dediquei às matérias mais voltadas para a infância, o desenvolvimento infantil, a educação... Foi aí que conheci duas grandes mestras, de quem me lembro muito até hoje. Terezinha e Márcia, seus nomes.

Formavam uma dupla inseparável. E quase isolada no departamento. Além de suas matérias sobre Piaget, desenvolvimento infantil, psicologia do excepcional (sim, esse nome era real), elas tinham um projeto no ambulatório pediátrico do HC, entitulado "Canto do brincar". E ele era isso mesmo: um canto, no final do corredor, com mesinha e brinquedos, para que aqueles que aguardavam consultas, vindos de todo o estado, pudessem brincar.

Tive a honra de fazer parte desse projeto e me lembro com muito carinho das tardes que passei naquele canto. Ali, brincando com crianças com as mais diversas enfermidades, quase todas crônicas, foi que comecei a aprender a escutar. Não ouvir. Escutar. E aprendi a mágica que o brincar promove na gente. Não só nas crianças, em todos nós. Muitos pais se sentavam ali, "só para acompanhar seus filhos". Algum tempo depois, o olhar cansado da viagem desde uma cidade distante do interior, iniciada na madrugada e que, provavelmente só terminaria a noite, para mais uma consulta bimensal de cerca de 20 minutos com estudantes de medicina, dava lugar a um certo brilho. O brincar às vezes virada conjunto, criava uma conexão com o filho, que não existia quando estavam lado a lado aguardando nas cadeiras descascadas do corredor. Às vezes, o adulto era tão absorvido pela atividade, que brincava sozinho, e fugia dali. E eles contavam suas histórias, os adultos e as crianças, brincando. E eu ouvia como quem bebe água depois de dias no deserto.

Já mais para o final do curso, fiz praticamente todas as matérias de psicanálise que o departamento oferecia. Meus estágios foram quase todos de clínica psicanalítica e/ou saúde mental. Depois de formada, frequentei diversas atividades da Escola Brasileira de Psicanálise. Participei de grupos de estudo, cartéis, práticas clínicas, jornadas... Sempre mais mobilizada pelas questões da infância, mas sempre com uma base teórica freudiana. Foi abandonando os textos de Piaget e Vygotsky, e lendo cada vez mais Lancan e psicanalistas que escreviam mais sobre crianças.

As aulas de Márcia e Terezinha, no entanto, ainda balizam minha prática, meu jeito de olhar o mundo. Aquelas tardes de supervisão no Ambulatório Bias Fortes ainda são das melhores lembranças que tenho da faculdade. Lembro até hoje de uma questão de prova, elaborada pela professora Márcia, que pedia para, à luz da teoria piagetiana, dissertarmos sobre os versos "A lição sabemos de cor/ Só nos resta aprender". Elas me fizeram entender o brincar como umas das atividades humanas mais essenciais, como um discurso que vai muito além do que palavras podem expressar.

Hoje, mãe, brinco muito. Com ou sem brinquedos, em casa, na rua, no carro. Adoro ver minha filha brincar, adoro brincar junto. Adoro ver os insights, o aprendizado, a forma como ela elabora as coisas brincando.

Na prática clínica, nos deparamos com as mais variadas tristezas e limitações humanas. A que mais me mobiliza e me comove, ainda hoje, é a criança que não brinca. Porque não sabe, porque não tem vontade ou motivação. Criança que não brinca, pra mim, é dos sintomas psíquicos mais graves.

Escrevo isso tudo hoje, porque amanhã se inicia a Semana Mundial do Brincar. Há poucos motivos mais nobres para mobilização social, a meu ver. Garantir o direito e a possibilidade de brincar, garantir a brincadeira com fim em si mesma, o brincar livre, não estruturado ou dirigido, o brincar como meio e forma de desenvolvimento humano, expressão, elaboração... Essa causa deve ser abraçada com seriedade por cada um que tem qualquer interesse pelo bem-estar social. Algumas crianças hoje, por motivos mais variados, não sabem mais brincar. Pelo menos não sem que alguém as diga como.

Passei toda a semana me lembrando de Márcia e Terezinha, que não vejo há anos, mas soube por uma amiga, que conheci nas supervisões no Ambulatório Bias Fortes - e ainda hoje está presente em  minha vida, que seguem uma dupla inseparável, aposentadas, com suas personalidades tão distintas e marcantes. Duas mulheres fortes, exemplos, que me ensinaram a voltar a brincar, quando eu já achava que brincar era coisa de criança.

Amanhã, a amiga aí citada e eu, junto com outras mulheres fortes que sequer conheço pessoalmente, mas que formaram conosco uma rede linda e interessante, estaremos na praça com nossas crianças... Brincando. Convocamos muitas famílias para estarem conosco. Vamos nos reunir num espaço público e brincar. Esse é o jeito que encontramos de chamar a atenção para essa causa, tão cara a qualquer um envolvido com maternagem, desenvolvimento infantil, crianças.

O brincar, mais uma vez, me deu um presente - me uniu a pessoas que sequer conheço, gerando uma rede de cooperação e trabalho em conjunto, com dedicação e envolvimento, simplesmente por nos preocuparmos e querermos uma sociedade e um mundo mais amplamente saudável para nossas crianças.

“As maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo, aquisições que no futuro tornar-se-ão seu  nível básico de ação real  e moralidade." Vygotsky

http://semanamundialdobrincar2014.wordpress.com/

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