sábado, 20 de setembro de 2014

Dos partos que eu tive... - ParteVII: Somewhere over the rainbow.

"Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade 
De aceitá-la tal como é, e essa visão 
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança."

(Trecho de "O haver" - Vinicius de Moraes)


Parte final. Excessivas partes, mas não poderia deixar de fazer um balanço. Foram partos muito distintos, da Alice e do Miguel, separados por tanta coisa -sobretudo informações, que resulta impossível não fazer uma avaliação dessas diferenças e seus efeitos. Subjetivos e práticos.

Sinceramente, não sinto remorso, culpa, revolta, nem mesmo tristeza em relação ao parto da Alice. Ainda que saiba, hoje, quão diferente (e melhor!) poderia ter sido. Foi o que dei conta, o que pude naquele momento. O parto foi um dos eventos de nossa história juntas. Uma história de tanta cumplicidade, tanta alegria e beleza, que me torna uma pessoa melhor a cada dia.

Melhor o suficiente para mudar esse evento, o parto, na minha história com o Miguel. 

Sinto-me aliviada e muito feliz por ter trabalhado por um parto diferente, o mais próximo possível do que, hoje, acho que um parto deve ser. Por ter podido oferecer ao Miguel, uma recepção tão suave, em que eu e Dudu participamos ativamente, sem intermediários. Apenas com apoio - carinhoso, com amor, baseado em evidências e tudo o mais que havia de melhor a nosso alcance. 

Alice me fez mãe... Mais tolerante, mais curiosa, mais interessada em fazer do mundo um lugar melhor, mais feliz. A minha vida ficou muito melhor e maior. Mudei para ela e por ela, mas uma mudança ainda ego-centrada. 

A preparação, a mudança de perspectiva, a tomada de consciência que culminaram no parto do Miguel, tal como relatei nesta mesma série, me tornaram uma pessoa melhor de forma mais ampla, mais universal. Vivi epifanias no pós-parto, que teriam sido impossíveis tivesse outro parto dentro do sistema vigente.

Nasceu em mim a consciência e um imenso desejo de que todo parto deveria ser assim, o que hoje chamam de parto humanizado, mas que deveria ser apenas... Parto. Não estou falando, obviamente, da via de parto, se com ou sem intervenções de qualquer sorte. Estou falando de parto respeitoso, com as intervenções apenas que se fazem imperiosas - incluindo aqui analgesia, se for desejo da mãe, uma vez que cada uma sabe de seu limiar de dor e os limites de seu corpo.

Ter vivido um parto natural, against all odds, foi maravilhoso, sim! Me tornou melhor, sim! Mas, mais uma vez, de forma subjetiva. O que me tornou uma pessoa melhor para o mundo, foi o tipo de assistência recebida. Foi ter sido escutada sem julgamento e crítica por uma amiga; ter recebido dela sugestões e indicações, para que eu as usasse a meu tempo e a minha maneira, sem cobrança. Foi ter sido recebida por um médico, já no fim da gestação, que me apontou outro caminho, mas depositou em mim a responsabilidade (e os louros!) pelo tipo de parto que teria, me oferecendo subsídios para a construção de uma outra história. Foi ter encontrado na enfermeira uma parceira para fazer acontecer da melhor maneira possível, ainda que não soubéssemos exatamente como.

Tornar-me mãe foi, sem dúvida, a maior e melhor transformação na minha vida. Tornar-me mãe, pela segunda vez, sendo protagonista no parto, potencializou tudo o que a maternidade me trouxe de bom. Me tornou uma mãe e uma pessoa melhores.

Ao mesmo tempo, toda essa experiência me trouxe angústia. Por saber que experiências assim são exceção. Por ter sentido na pele o que passam, no pós parto, as poucas mulheres que, sem recursos financeiros, conseguem um parto respeitoso no SUS, mas acabam em enfermarias lotadas, com atendimento, estrutura e condições precárias. Por saber que poucas são incentivadas a buscar um parto fora do sistema e que, as que o fazem, precisam de muito investimento - de energia, desejo, e dinheiro mesmo. Por saber que a luta por partos humanizados muitas vezes se confunde com uma briga mesquinha, entre quem defende cesárea como opção e quem defende parto normal/natural. Por saber que a informação só chega a quem procura muito, e às vezes chega de forma tão panfletária, que mais repele do que atrai e efetivamente informa.

Se existe um sentimento bittersweet, é o meu em relação ao parto humanizado. Descobri Pasárgada, queria que todos vivessem ali, mas o caminho é tortuoso e a passagem é muito, muito cara. 



Não quero sair por aí "convertendo" ninguém, mas me sentirei muito contente em poder dividir minha experiência com quem quiser ouvir. Poucas coisas me dariam mais satisfação do que poder ser uma agente transformadora na vida de alguma mulher que, tomando conhecimento da minha experiência, decida e busque seu próprio parto-paraíso. Porque toda experiência de parto deveria ser linda! Aqui, agradeço mais uma vez a Daniela, que foi essa agente transformadora pra mim, para o Dudu, para a Alice e, sobretudo, para o Miguel! Graças a ela somos todos melhores hoje.

Também transformador é encontrar profissionais que praticam a clínica da escuta, não somente do olhar; que assistem, se necessário, não apenas tratam; que cuidam de sujeitos, não de sintomas. Serei sempre grata ao Dr. Lucas, por sua confiança e certeza tão sem arrogância e tão embasadas, quando nem eu mesma confiava tanto assim. Por nos revelar coisas que nos pareciam tão distantes e misteriosas, com tamanha intimidade e leveza, como quem fala das coisas mais banais e corriqueiras. Aquele jeito de surfista que acabou de chegar do mar, como quem não se apercebe das coisas mundanas, que muito nos divertiu, ajudou a desmistificar e simplificar todo o processo. Incrível sua capacidade de ser fundamental e desnecessário! O próprio Mágico de Oz.

Last but not least, também imprescindível para toda essa experiência foi o encontro com Míriam Rêgo. Mais do que prestar serviços de enfermeira obstetra, ela nos ouviu e acolheu, com nossas ignorâncias mas, sobretudo (e apesar delas), com nossas certezas cheias de soberba. Se colocou, para nós, como uma companheira de jornada, disposta a construir e descobrir o caminho, mas de maneira tão segura e tranquila, que seríamos incapazes sozinhos. Vou sempre associá-la a Blimunda, essa mulher fantástica, personagem de Saramago, capaz de ver e recolher as vontades das pessoas, para que um dia sejam o combustível da Passarola, um sonho louco, que depende da ciência, da arte e do sobrenatural para voar. Assim como a luta para que o parto humanizado se torne uma realidade cotidiana no Brasil.

Obrigada ainda a você, né? Que teve paciência para acompanhar, integral ou parcialmente, esta enorme série de posts sobre um percurso tão life changing para mim. Como escrevi quando compartilhei o primeiro post no Facebook: escrevo e compartilho para que, talvez, alguém se beneficie dessas experiências, como eu me beneficiei de tantas outras. 

Mulheres do meu Brasil, calcem seus sapatinhos vermelhos e sigam a estrada de tijolos amarelos! We are not in Kansas anymore.


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